Zuenir Ventura, O GLOBO
Já foi mais fácil tomar partido. O
mundo e as coisas tinham apenas dois lados, o bom e o ruim, o branco e o preto,
o certo e o errado, o bonito e o feio.
A democracia é que inventou essa
complicação de vários pontos de vista, de ambivalência, substituindo o
maniqueísmo pelo relativismo. O bem pode estar dentro do mal e vice-versa,
entre o preto e o branco há o cinza, entre as luzes e as trevas existe o
crepúsculo, e até o feio e o bonito variam conforme o gosto.
No tempo do sectarismo ideológico, não
haveria dúvidas em relação, por exemplo, a questões que se discutem tanto. Você
é contra ou a favor da importação de médicos cubanos? Era muito simples: se
vinha de Cuba, era bom. Ou ruim. Dependia de sua posição política.
Agora, a
complexidade de certos casos não admite mais resposta binária, pelo menos para
quem não carrega na cabeça resquícios da Guerra Fria.
Como ser contra enviar médicos cubanos
para os lugares onde os nossos não querem ir? Só com muito preconceito
ideológico ou corporativismo, ou os dois.
Ao mesmo tempo, como aceitar
passivamente que esses profissionais permaneçam submetidos a um regime
ditatorial que confisca parte de seus salários e não os deixam trazer suas
famílias, retidas lá como reféns para evitar possíveis deserções? Não dá para
desprezar os direitos humanos e dizer: “Isso é problema deles, não nosso”.
Mesmo pesando os prós e os contras na busca de isenção, a decisão é complicada.
Virá sempre acompanhada de um “mas”, “porém”, “por outro lado”.
Diferente, mas também com implicações
políticas, é o caso do diplomata Eduardo Saboia, que à revelia do Itamaraty deu
fuga ao senador boliviano Roger Pinto, que esteve refugiado na embaixada do
Brasil em La Paz durante 452 dias.
Preocupado com a saúde debilitada do
asilado, Saboia colocou-o um dia num carro, viajou 1600 quilômetros acompanhado
de dois fuzileiros brasileiros, e depositou-o em Corumbá, enfurecendo o governo
boliviano.
O senador é um desafeto de Evo Morales,
a quem acusa de corrupção, e é acusado por este do mesmo crime. Politizada, a
questão gerou uma séria crise diplomática entre os dois países. Para uns,
Saboia foi um “herói”, do ponto de vista humanitário; para outros, um
“irresponsável”. Vai ver, cada lado tem um pouco de razão.
Em suma, trata-se de um mundo
complicado que cobra atitude onde tudo é relativo, inclusive essa afirmação.
Da rebelde Alice insurgindo-se contra a
proibição paterna de comer chocolate fora de hora: “Estou ficando furiosa.
Pronto (rangendo os dentes) já estou furiosa.” Ela é indomável. Acho que nem
com gás de pimenta.
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