quarta-feira, 5 de junho de 2013

SERVI DE COBAIA PARA UMA AULA DE TORTURA

 Por Dulce Pandolfi

"Na noite do dia 20 de agosto de 1970, no momento em que entrei no quartel da Polícia do Exército situado na Rua Barão de Mesquita, número 425, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, ouvi uma frase que até hoje ecoa forte em meus ouvidos: “Aqui não existe Deus, nem Pátria, nem Família. Só existimos nós e você”.

Hoje, passados mais de 40 anos, penso no efeito que aquela frase produziu em mim. Com vinte e um anos de idade, cheia de certezas e transbordando de paixões, eu não queria morrer.

Embora totalmente acuada e literalmente apavorada, aquela frase não deixava a menor dívida sobre algo que eu já sabia, mas que naquele momento ganhou força e concretude. Não havia comunicação ou negociação possível entre aqueles dois mundos: o meu e o deles.
(...)

Normalmente, os torturadores, embora quase todos militares, andavam à paisana. Os fardados cobriam com um esparadrapo o nome gravado em um dos bolsos do uniforme. Cabia aos cabos e soldados cuidar da infraestrutura.

Eram eles que fechavam e abriam as celas, nos levavam para os interrogatórios, ou melhor, para as sessões de tortura, faziam a ronda noturna, levavam as nossas refeições.

Ali não havia banho de sol, visita familiar, conversa com advogado. Nenhum contato com o mundo lá fora.  Naquela fase, éramos presos clandestinos. Só saíamos das celas para os interrogatórios, de olhos vendados, sempre com um capuz preto na cabeça.
(...)

Durante os mais de três meses que fiquei no DOI CODI, fui submetida, em diversos momentos, a diversos tipos de tortura. Algumas mais simples, como socos e pontapés. Outras mais grotescas, como ter um jacaré andando sobre meu corpo nu.

Recebi muito choque elétrico e fiquei muito tempo pendurada no chamado “pau de arara”: os pés e os pulsos amarrados em uma barra de ferro e a barra de ferro colocada no alto, numa espécie de cavalete.

Um dos requintes era nos pendurar no pau de arara, jogar água gelada e ficar dando choque elétrico nas diversas partes do corpo molhado. O contato da água com o ferro potencializava a descarga elétrica.

Embora essa tenha sido a tortura mais frequente havia uma alternância de técnicas.  Uma delas, por exemplo, era o que eles chamavam de “afogamento”.

Amarrada numa cadeira, de olhos vendados, tentavam me sufocar com um pano ou algodão embebido em algo de cheiro muito forte, que parecia ser amônia. 
(...)

No dia 20 de outubro, dois meses depois da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia para uma aula de tortura.
O professor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. 

Era uma espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas.  Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau de arara, ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais eficaz”. Acho que o professor tinha razão.

Como comecei a passar mal, a aula foi interrompida e fui levada para a cela. Alguns minutos depois, vários oficiais entraram na cela e pediram para o médico medir minha pressão.

As meninas gritavam, imploravam, tentando, em vão, impedir que a aula continuasse. A resposta do médico Amilcar Lobo, diante dos torturadores e de todas nós, foi: “ela ainda aguenta”. E, de fato, a aula continuou. 
(...)

Eu acuso todos os torturadores, civis e militares, inclusive aqueles que diziam e continuam dizendo que estavam apenas cumprindo ordens dos seus superiores.

Eu acuso os altos oficiais e comandantes do Exército Brasileiro que, em visitas oficiais ao DOI CODI, entravam nas nossas celas e faziam gracejos com as nossas torturas. Em uma dessas visitas, um desses oficiais mandou que seu acompanhante, um cão pastor, lambesse minhas feridas. 

Eu acuso quem, durante a minha primeira sessão de tortura, me deu uma injeção na veia, dizendo ser o tal “soro da verdade”.

Eu acuso o major da Polícia Militar Riscala Corbaje, conhecido como doutor Nagib, que ao perceber que o tal soro da verdade não havia produzido o efeito esperado, me levou para uma pequena sala, me deitou no chão, subiu nas minhas costas, começou a pisotear e a me bater com um cassetete, dizendo, aos gritos, que ia me socar até a morte. 

Seu descontrole foi tamanho e seus gritos tão estridentes que os outros torturadores entraram na sala e o arrancaram de cima de mim. 
(...)

Eu acuso os ex-presidentes da República Humberto Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo. A despeito das divergências entre eles e das diferentes conjunturas em que chefiaram o país, todos, sem exceção, foram responsáveis e coniventes com a tortura."


Extratos do depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade por Dulce Chaves Pandolfi, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense.
Depoimento à Comissão Nacional da Verdade de Dulce Chaves Pandolfi, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Lecionou Sociologia e Ciência Política no Conjunto Universitário Cândido Mendes e na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Desde 1978 é pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. E de 2004 para cá, diretora do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais, Ibase



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