Por Dulce Pandolfi
"Na noite do dia 20 de agosto de
1970, no momento em que entrei no quartel da Polícia do Exército situado na Rua
Barão de Mesquita, número 425, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, ouvi uma
frase que até hoje ecoa forte em meus ouvidos: “Aqui não existe Deus, nem
Pátria, nem Família. Só existimos nós e você”.
Hoje, passados mais de 40 anos, penso
no efeito que aquela frase produziu em mim. Com vinte e um anos de idade, cheia
de certezas e transbordando de paixões, eu não queria morrer.
Embora totalmente acuada e literalmente
apavorada, aquela frase não deixava a menor dívida sobre algo que eu já sabia,
mas que naquele momento ganhou força e concretude. Não havia comunicação ou
negociação possível entre aqueles dois mundos: o meu e o deles.
(...)
Normalmente, os torturadores, embora
quase todos militares, andavam à paisana. Os fardados cobriam com um
esparadrapo o nome gravado em um dos bolsos do uniforme. Cabia aos cabos e
soldados cuidar da infraestrutura.
Eram eles que fechavam e abriam as
celas, nos levavam para os interrogatórios, ou melhor, para as sessões de
tortura, faziam a ronda noturna, levavam as nossas refeições.
Ali não havia banho de sol, visita
familiar, conversa com advogado. Nenhum contato com o mundo lá fora.
Naquela fase, éramos presos clandestinos. Só saíamos das celas para os
interrogatórios, de olhos vendados, sempre com um capuz preto na cabeça.
(...)
Durante os mais de três meses que
fiquei no DOI CODI, fui submetida, em diversos momentos, a diversos tipos de
tortura. Algumas mais simples, como socos e pontapés. Outras mais grotescas,
como ter um jacaré andando sobre meu corpo nu.
Recebi muito choque elétrico e fiquei
muito tempo pendurada no chamado “pau de arara”: os pés e os pulsos amarrados
em uma barra de ferro e a barra de ferro colocada no alto, numa espécie de
cavalete.
Um dos requintes era nos pendurar no
pau de arara, jogar água gelada e ficar dando choque elétrico nas diversas
partes do corpo molhado. O contato da água com o ferro potencializava a
descarga elétrica.
Embora essa tenha sido a tortura mais
frequente havia uma alternância de técnicas. Uma delas, por exemplo, era
o que eles chamavam de “afogamento”.
Amarrada numa cadeira, de olhos
vendados, tentavam me sufocar com um pano ou algodão embebido em algo de cheiro
muito forte, que parecia ser amônia.
(...)
No dia 20 de outubro, dois meses depois
da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia para
uma aula de tortura.
O professor, diante dos seus alunos,
fazia demonstrações com o meu corpo.
Era uma espécie de aula prática, com
algumas dicas teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada
no tal do pau de arara, ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais eficaz”.
Acho que o professor tinha razão.
Como comecei a passar mal, a aula foi
interrompida e fui levada para a cela. Alguns minutos depois, vários oficiais
entraram na cela e pediram para o médico medir minha pressão.
As meninas gritavam, imploravam,
tentando, em vão, impedir que a aula continuasse. A resposta do médico Amilcar
Lobo, diante dos torturadores e de todas nós, foi: “ela ainda aguenta”. E, de
fato, a aula continuou.
(...)
Eu acuso todos os torturadores, civis e
militares, inclusive aqueles que diziam e continuam dizendo que estavam apenas
cumprindo ordens dos seus superiores.
Eu acuso os altos oficiais e
comandantes do Exército Brasileiro que, em visitas oficiais ao DOI CODI,
entravam nas nossas celas e faziam gracejos com as nossas torturas. Em uma
dessas visitas, um desses oficiais mandou que seu acompanhante, um cão pastor,
lambesse minhas feridas.
Eu acuso quem, durante a minha primeira
sessão de tortura, me deu uma injeção na veia, dizendo ser o tal “soro da
verdade”.
Eu acuso o major da Polícia Militar
Riscala Corbaje, conhecido como doutor Nagib, que ao perceber que o tal soro da
verdade não havia produzido o efeito esperado, me levou para uma pequena sala,
me deitou no chão, subiu nas minhas costas, começou a pisotear e a me bater com
um cassetete, dizendo, aos gritos, que ia me socar até a morte.
Seu descontrole
foi tamanho e seus gritos tão estridentes que os outros torturadores entraram
na sala e o arrancaram de cima de mim.
(...)
Eu acuso os ex-presidentes da República
Humberto Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e
João Batista Figueiredo. A despeito das divergências entre eles e das
diferentes conjunturas em que chefiaram o país, todos, sem exceção, foram
responsáveis e coniventes com a tortura."
Extratos
do depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade por Dulce Chaves Pandolfi,
graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestre em
Ciência Política pelo IUPERJ e doutora em História pela Universidade Federal
Fluminense.
Depoimento
à Comissão Nacional da Verdade de Dulce Chaves Pandolfi, graduada em Ciências
Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Ciência Política pelo
IUPERJ e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Lecionou
Sociologia e Ciência Política no Conjunto Universitário Cândido Mendes e na
Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Desde 1978 é
pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. E de 2004 para cá, diretora
do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais, Ibase
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