Por
J.R. Guzzo
Imagine
por um instante — só por curiosidade, certo? (Só por curiosidade; é claro que
ninguém aqui está sugerindo nada, pelo amor de Deus, e muito menos qualquer
tipo de ato antidemocrático.) Então: imagine por um instante o que aconteceria
se um dia desses o presidente da República, ou alguém do seu governo, recebesse
a milésima ordem do Supremo Tribunal Federal para explicar “em 48 horas”, ou
“três dias”, ou coisa que o valha, por que fez isso ou por que deixou de fazer
aquilo, e não desse resposta nenhuma. O que aconteceria, em outras palavras, se
dissesse ao ministro Barroso, ou ao ministro Alexandre, ou à ministra Rosa, ou
qualquer um dos 11: “Olha, ministro tal, vá para o diabo que o carregue”?
Como
nunca aconteceu até hoje, e como nunca o STF mandou o presidente da República
explicar seja lá o que fosse em nenhum governo anterior ao atual, não dá para
responder com certeza científica; falta, como se diz, a prova da experiência.
Mas, pela Lei das Probabilidades, que no fundo vale bem mais que muita lei
aprovada por esse Congresso que está aí, pode se dizer com grande margem de
segurança que não iria acontecer rigorosamente nada.
Claro, claro: a mídia ia
ficar enlouquecida, mais do que em qualquer momento do governo de Jair
Bolsonaro, e o centro liberal-civilizado-moderno-intelectual-etc. entraria numa
crise imediata de histeria. As instituições, iriam gritar todos, as
instituições: o que esse homem fez com as nossas sagradas instituições, meu
Deus do céu? A Constituição Cidadã está sendo rasgada. A democracia acaba de
ser exterminada no Brasil. É golpe. É ditadura militar. Mas seria só uma crise
de nervos no mundinho da elite, mais nada. Na prática, e nas coisas que
realmente interessam, o governo poderia mandar o STF não encher mais a
paciência, pronto — e não mudaria absolutamente coisa nenhuma.
Os
colégios chiques continuariam a aumentar as mensalidades, e a chamar seus
alunos de alunes
A
população, com certeza, estaria pouco se lixando para a indignação do STF, das
gangues políticas, da elite meia-boca a bordo dos seus SUVs, das classes
pensantes e dos banqueiros de investimento de esquerda; é possível, aliás, que
dissesse “bem feito”. Todo mundo iria continuar trabalhando. Os boletos
bancários continuariam vencendo. Os ônibus continuariam saindo das rodoviárias.
Os serviços de água encanada, energia elétrica e coleta de lixo, nos lugares em
que existem, continuariam funcionando. Ninguém iria desmarcar uma consulta
médica, nem faltar a um compromisso, nem fazer qualquer coisa diferente. Nenhum
país iria romper relações com o Brasil. Os evangélicos iriam ouvir o pastor nas
igrejas. Os portos continuariam a embarcar soja. Os colégios chiques
continuariam a aumentar as mensalidades, e a chamar seus alunos de alunes.
A centésima primeira variante do vírus iria aparecer num canto qualquer. É
possível, até, que a Bolsa de Valores subisse. Enfim: a solidariedade, o
respeito e o apreço dos brasileiros pelo STF e pelo resto das nossas
“instituições democráticas” permaneceriam exatamente onde estão, ou seja, no
zero absoluto.
E,
de mais a mais, o que os ministros do STF, o Jornal Nacional e todos
os demais indignados poderiam fazer na prática? Chamar o Exército para prender
o presidente da República? Chamar a PM de Brasília? Chamar a tropa da ONU? Os
presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, esses que estão aí
hoje, iriam fazer algum gesto heroico de “resistência”? Rolaria, enfim, o impeachment que
não rolou até agora? Lula, o PT e a CUT iriam decretar uma greve geral por
tempo indeterminado, até a queda do governo?
A verdade é que não existe, na
vida como ela é, nenhum meio realmente eficaz para exigir obediência do
Executivo se ele não quiser obedecer. Não só do Executivo, por sinal — do
Legislativo também não. Ainda outro dia, por exemplo, aconteceu exatamente
isso. Foi a primeira vez, mas aconteceu: a ministra Rosa, em mais um desses
acessos de mania de grandeza que são a marca do STF de hoje, anulou uma lei
aprovada pela Câmara —, e a Câmara não tomou conhecimento da anulação.
Tratava-se, no caso, de um projeto que afetava diretamente o bolso dos
deputados, entregando a eles bilhões em “emendas parlamentares”. Aí não: a
decisão foi ignorada, a lei continuou valendo e depois de muito fingimento de
parte a parte, para disfarçar o naufrágio da decisão do STF, ficou tudo como
estava.
Não
há nenhum sinal, entretanto, de que possa acontecer alguma coisa parecida com a
atual Presidência da República. Poucas vezes na história deste país, ou nunca,
se viu um governo tão banana quanto o que está hoje no Palácio do Planalto. Tem
muita “laive”, passeata de motocicleta e implicância com a vacina, mas comandar
que é bom, como determina a lei e como o eleitorado decidiu, muito pouco, ou
nada.
Para começar, o Executivo não controla nem a metade do Orçamento federal;
o resto poderia estar sendo gasto no Paraguai. O presidente não manda na
máquina pública; não pode nomear nem o diretor da Polícia Federal. Também não
pode demitir. Cada um faz mais ou menos o que bem entende, frequentemente em
obediência ao PT e a grupos de esquerda. O governo dá ordens que são pura e
simplesmente ignoradas. Decidiu que não poderia haver demissões de empregados
que não tivessem tomado vacina; um tribunal qualquer, desses que se reproduzem
como coelhos em Brasília, decidiu o contrário e ficou por isso mesmo. As
Secretarias Estaduais de Saúde dão ordens opostas às do Ministério da Saúde; o
que fica valendo é a decisão das secretarias. O procurador-geral da República,
nomeado pelo presidente Bolsonaro, dirige uma equipe que lhe faz oposição
aberta e direta.
Que
raio de governo “autoritário” é esse que não tem autoridade nenhuma?
Um
dos maiores aliados do governo, o ex-deputado e dirigente partidário Roberto
Jefferson, está na cadeia há mais de quatro meses — é, por sinal, o único preso
político do Brasil. Outro, o jornalista Allan dos Santos, teve de se refugiar
nos Estados Unidos e está com a prisão solicitada à Interpol.
Governadorzinhos
e prefeitinhos de fim do mundo governam como bem entendem. Qualquer nulidade do
Congresso ou da vida política, desde que tenha carteirinha de militante de
“esquerda”, vive correndo ao STF para que o governo faça assim, ou não faça
assado; é atendido sempre, como nos pedidos permanentes de “explicações”. Que
raio de governo “autoritário” é esse que não tem autoridade nenhuma?
É
muito interessante, assim, o ponto de vista do ministro Gilmar Mendes sobre
essa anarquia cada vez mais grosseira. Segundo Gilmar, diante das realidades
que estão aí na frente de todo mundo, o mais sensato para o Brasil seria a
adoção do parlamentarismo. É, possivelmente, a única contribuição construtiva
jamais dada para o atual debate político por um membro do STF.
O que adianta
ter presidente da República se a Presidência da República não manda nada? Para
que esse drama de eleição presidencial a cada quatro anos se o eleito, seja
quem for, vai passar o tempo todo em crise? Eis aí um excelente recado: se não
governa, pede para sair.
José
Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro,
colunista dos jornais O Estado de S. Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste